sexta-feira, agosto 21, 2009

Conto moderno I



Olhava pela janela e via a vida passar, “a vida dos outros” pensa com escárnio, a sua estava “ali, parada!”

Olhava pela janela embaciada, a rua que a vira crescer, a esquina ao pé do muro da D.ª Alice, lembrava-se do trambolhão que dera na bicicleta do irmão mais velho e que lhe deixara aquela cicatriz na testa em forma de V. No passeio em frente à Dª Alice, como era mais largo, jogavam à macaca, ela a Belinha, a Rita, o João, o Rui e os miúdos da praceta das traseiras. (mais lágrimas quentes e amargas…)

Olhava pela janela salpicada de gotinhas de chuva, era um Fevereiro chuvoso e frio … também o último o fora… lembrava-se de escondida por trás do muro da escola sentir os braços quentes dele, espantavam-lhe o frio, deixavam-na a ferver, “por baixo”, as cuequinhas de algodão húmidas… o coração disparado…, a voz dele, “és tão linda” enquanto levantava-lhe a blusa e beijava-lhe os seios… “gostosa” descia-lhe as calças pelas pernas, apalpa-lhe o sexo molhado, ri-se, “hum! …” (com as faces afogueadas, sente o coração aos saltos com as recordações) não, não sentira frio no Fevereiro anterior … (irrita-se com aquelas sensações, com as lembranças… mais lágrimas pingam do queixo para a blusa onde agora uns seios fartos doem-lhe…)

Olhava pela janela velha, lá fora algumas pessoas passam apressadas outras como o Sr. Armando vai devagar, apoiado na bengala escura, entra no mini-mercado da Ti Ana … olha para a esquina oposta, vê o muro da casa da D.ª Custódia “a velha alcoviteira” pensa, “bem agora já não alcovita tanto desde que caíra num tampão de esgoto em Lisboa vinda da consulta do St.ª Maria e partira-se toda, uma perna, um braço lascado” dissera-lhe a mãe, “impedem-na de ocupar o poiso habitual à janela” (do quarto do filho que foi para a Alemanha) porque fica mesmo à esquina dando-lhe a oportunidade de observar o movimento dos vizinhos em duas ruas… “velha desgraçada, devia ter partido mas era a língua!” (pensa, desta vez a cara vermelha de raiva, o corpo tenso, os punhos cerrados).

Olhava pela janela velha, embaciada e salpicada quando de repente vê virar a esquina a Sónia, a Belinha a Maria João uma outra que não sabia o nome (minha substituta pensa com amargura) e a Carla, a líder do grupo sempre linda e loira, vestida com umas Salsa (daquelas que empinam o rabo) uma blusinha angorá cor-de-rosa, curta exibindo um ventre liso e no umbigo um piercing, também cor-de-rosa, sob um sobretudo branco e desabotoado “- uma autêntica Barbie!”; conforme o grupinho aproxima-se da sua porta, instintivamente corre os puídos cortinados, num padrão floral horroroso mas que fazia as delícias da sua avó, e escondida naquela semi-transparência as vê passar na expectativa de alguma olhar naquela direcção, ou quem sabe de atravessarem a rua e tocarem à campainha para a visitarem… elas continuam… “ -para saberem como estou!”, o grupinho de adolescentes continua rua afora, passa o n.º 42, a rirem e falarem alto (miúdas!), sem sequer olhar…

Deixa-se cair lentamente até ficar de joelhos no chão, dobra-se para frente o corpo sacudido pelos soluços, fecha os olhos com força tentando reprimir as lágrimas, cerra os punhos para não se atirar as cortinas e rasgá-las, chora sozinha ajoelhada em frente à janela. Subitamente um calor percorre-lhe o corpo “oh não!” e num espasmo sente as mamas enrijecerem “não, não!” e o líquido quente sair-lhe do bico esquerdo, “arrrr, não!” quase ao mesmo tempo ouve a bebé começar a chorar.

Não se levanta! Tapa os ouvidos para não a ouvir. Não a quer ouvir… a bebé chora cada vez com mais força (os peitos doem-lhe) … aperta mais as mãos sobre os ouvidos e começa a cantarolar a primeira música que lhe vem a cabeça:
«… My loneliness is killing me/I must confess, I still believe…»
a bebé ainda chora, choro sentido de quem é ignorado… (sente os peitos inchados) canta mais alto
«Hit me baby one more time … / The reason I breathe is you / Boy you got me blinded / Oh baby, baby / There's nothing that I wouldn't do / That's not the way I planned it …» a bebé chora desconsoladamente do seu pequeno berço branco e amarelo, o mesmo berço do qual com certeza também ela chorara inúmeras vezes à 16 anos atrás, exigindo que a sua mãe a alimentasse, a abraçasse e lhe pusesse o peito na boca… os soluços abrandam, sente a raiva abandoná-la, os intervalos do choro de Mariana (como a avó) são mais espaçados.

Assustada levanta-se e corre para o quarto (seu quarto de menina que agora ficou mais pequeno com o berço e a cómoda das roupas da Mariana, a sua mãe assim o determinara, com os pacotes de fraldas empilhados ao lado do guarda-fatos, o toucador cheio de frascos, pó talco, creme anti-assaduras, Halibut, creme gordo, creme para o peito, uma infinita parafernália pediátrica onde outrora habitavam perfumes, batons, vernizes, rímel, sombra dos olhos… o espelho onde antes estavam recortes de revistas com modelos maquilhadas, às quais copiava, fotos dela e da Mariana, no hospital, em casa, com a avó…, onde esteve anos a fio um poster da Britney vestida como uma colegial, agora pendia um grande e colorido plano, que lhe deram no centro de saúde, com os vários cuidados dos bebés como as primeiras vacinas, dicas para trocar fraldas, conselhos para o banho, …) antes de passar a porta já está a despir a camisola, chega ao berço e pega uma Mariana já ligeiramente roxa de tanto chorar, sente a menina a aquietar-se, senta-se na cama, ajeita-se, ajeita-a e chega-lhe os pequenos lábios arroxeados ao bico da mama esquerda,

«pronto Mariana, pronto, a mamã está aqui, desculpa a mamã, desculpa» começa a chorar novamente ao mesmo tempo que sente a pequenina prender o bico e começar a sugar. "- Pronto já está! Come pequenina, para cresceres forte e saudável para poderes enfrentar a vida, como diz a avó, quer dizer minha avó, tua “bisa”!"

Encosta a cabeça para trás, olha para o tecto, do qual pende candeeiro da Kitty e pela primeira vez repara que a Kitty não tem boca, o rosto é só olhos e nariz,

"- A Kitty nunca sorri, Mariana!"

...

Autor: Morgaine Wordsworth

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